Historiadora Lilia Schwarcz conversa sobre cidadania com alunos do 9º ano

Publicado em 11 de abril de 2017 às 15:36
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O Colégio Dante Alighieri recebeu, na manhã de 4 de abril, a historiadora e antropóloga Lilia Moritz Schwarcz, pesquisadora com vasta produção acadêmica e literária, à qual se soma a elaboração de conteúdo sobre ciências sociais na imprensa*.

Ela veio conversar com alunos do 9º ano, que, no momento, estão estudando os estereótipos atribuídos às mulheres no campo da publicidade. Entre as diversas atividades realizadas pelos estudantes, está a produção de anúncios publicitários que trabalhem esse assunto, mas com abordagens que confrontem a estereotipagem.

Pelo amplo conhecimento de Lilia em questões sociais – comprovado por diversas publicações de sua autoria, algumas das quais utilizadas pelos alunos para embasamento do assunto – ela foi convidada a participar desse encontro, que durou pouco mais de uma hora, para tirar dúvidas dos alunos em diversos temas, como desigualdade social, de gênero e racismo.

Em sintonia com o tema estudado pelos alunos, uma das perguntas foi “Qual é o pior estereótipo usado para definir as mulheres?”, ao que Lilia iniciou sua explicação dizendo que “todo estereótipo é ruim”. “Estereótipo é quando você fixa uma determinada representação, e ela é tão forte que o que era imaginação se torna mais cruel que a realidade”, disse, antes de falar especificamente do cenário brasileiro.

“Um dos estereótipos mais terríveis que vejo no Brasil é a imagem da mulata, termo que, para começar, vem da imagem do animal mula. É uma imagem que aparecia em poesias, na literatura, e que começou a se colar nas pessoas há bastante tempo”, explicou, referindo-se em seguida aos cuidados para com o uso de uma linguagem não violenta. “Os termos não são inocentes, ninguém usa as palavras de forma inocente. Quem fala ‘mulata’ tem que saber quais são as conotações históricas por trás disso. Falam da mulher bonita de corpo, e também de pessoas insinuantes e muito sensualizadas. Ao invés de vítimas, viram algozes por serem insinuantes”, contou.

A pergunta seguinte discorreu sobre a hierarquia social: “Qual é a posição que a mulher ocupa na sociedade?”. Lilia começou falando da democracia, que pode ser considerada um processo “incompleto” pelo fato de nem sempre dar a mesma voz a todos os cidadãos. “Vocês, aqui, têm o papel fundamental de vigiar os direitos que chegam, pois nunca é fácil conquistá-los. Vivemos em tempos de muitos ódios, e grande parte da sociedade, em geral, sempre foi marcada pelo machismo, com homens recebendo uma formação diferente. A história foi cruel com as mulheres. Tanto que, em décadas passadas, mulheres de diversos países mal podiam estudar e votar, nem serem eleitas”, disse.

Para falar dessas diferenças, Lilia reportou a episódios da história do Brasil, colonizado, segundo ela, com fins de exploração de recursos. “Nesse primeiro momento, 80% das pessoas que vieram eram homens. No caso da escravidão, sistema tão perverso sobre o qual todos já estudaram, 92% das pessoas trazidas eram homens, e 8% mulheres e crianças. Foi um começo de história bastante desequilibrado, com o domínio de grandes proprietários homens, enquanto em muitos casos mesmo as mulheres brancas não podiam sair de casa. Por conta da escravidão, grande parte da população também não teve a oportunidade de receber educação formal. Só na década de 1930, por exemplo, as mulheres puderam começar a votar. Na Constituição de 1988, surgiu um parágrafo que falava dos direitos das mulheres. Muito recentemente, surgiu uma lei que determina que empresas que discriminam mulheres podem ser punidas. As delegacias da mulher foram surgindo. Mesmo com essas mudanças, e levando em conta que há mais mulheres que homens com boa formação, os postos de direção fora do campo da educação têm muito mais homens. Na política, o número de mulheres participantes não chega a 7%. Também podemos falar dos estupros, já que os números desse crime são consideravelmente altos. São dados que pedem imensa vigilância de nossa parte. Não é porque vivemos em nossas bolhas que não devemos dar atenção a essas questões, que podem afetar os outros mais severamente”, explicou.

Já que os assuntos estudados pelos alunos também envolvem o conceito de cidadania, eles pediram à antropóloga que desse sua própria definição do termo. “O conceito vem da ideia de cidades, e tem a ver com nossos direitos e deveres. Até o começo do século XX, vivíamos em uma sociedade que residia, em grande parte, no campo. Hoje em dia, a maior parte das pessoas vive em regiões urbanas, e a convivência entre elas é muito maior, razão pela qual as regras de cidadania foram mudando com o tempo. Hoje em dia, por exemplo, precisamos saber da importância de recebermos pessoas vindas de culturas diferentes e, enquanto isso, irmos construindo outro processo de cidadania.”

Ainda falando em cidadania, Lilia comentou as grandes desigualdades existentes no Brasil, um cenário que, de acordo com ela, representa justamente o oposto do que se espera com relação ao ideal de cidadania. “Não sei se vocês sabem, mas o Brasil ainda é um dos países campeões em desigualdade social. Isso produz uma sociedade muito estratificada, com muitos direitos e poucos deveres, ignorando a necessidade de ouvirmos pessoas diferentes de nós. Há diversos marcadores sociais de diferença, como gênero, raça, classe (social) e região (em que as pessoas nasceram e moram), que afetam fortemente a convivência e a cidadania. Aqui no Sudeste, por exemplo, é comum ouvirmos pessoas sendo violentas ao falarem de pessoas do Nordeste”, explicou.

A penúltima manifestação dos alunos foi um convite para Lilia falar sobre suas impressões a respeito do movimento feminista. “Sou muito feminista, e minha geração batalhou muito pela causa. Mas não só falando da causa superficialmente [como teoria], mas também vivendo isso no dia a dia. Conheço meu marido desde os 14 anos e nos conhecemos muito bem, sempre tivemos uma divisão de trabalho muito funcional, desde o preparo das refeições, por exemplo, até o papel de cada um na economia da casa, nos cuidados com os filhos. Se em um momento precisei tomar conta dos meus filhos mais intensamente quando o meu marido tinha outros compromissos, em outros ele é que ficou cuidando deles enquanto eu viajava para estudar e dar aulas. É um desafio diário, e não podemos ser feministas só nas horas vagas. É um compromisso 24 horas”, explicou.

Já no final do encontro, os alunos perguntaram à antropóloga qual era o panorama que ela via no espectro político da esquerda no Brasil. “Essa é uma pergunta muito importante, pois vivemos um momento muito polarizado. Quando estudei, todo mundo se dizia no mínimo de centro-esquerda, não era bom ser de direita. Agora as pessoas podem assumir isso, o que é muito importante, assim como outras também podem falar que são de esquerda. Mas na verdade só sei falar da esquerda se também falar de minhas impressões sobre a direita. O que acho da esquerda no Brasil? Ela sofreu várias derrotas, apostou muito não só no governo do PT, como também no do PSDB, por exemplo. Mas, no fim das contas, a corrupção, que é o grande inimigo da república, envolveu não só políticos de esquerda, como os de outros espectros políticos, como os casos recentes têm mostrado”, explicou, antes de concluir falando da forma pela qual os então “direitos inalienáveis” podem ser afetados.

“Nós, todo mundo, acreditamos ter construído direitos que eram inalienáveis, como o do acesso à saúde, à educação, ao gênero e às diferenças. O que estamos vendo agora, no entanto, tem sido uma reversão dos direitos que pensávamos estar consolidados, mas que não estão. Minha aposta é que há muito radicalismo, e que nossa posição tem justamente que ser o de combater qualquer ódio”, diz.

*Lilia Schwarcz é graduada em História pela USP, tem mestrado em Antropologia Social pela Unicamp, doutorado e livre-docência em Antropologia Social pela USP. Também estudou e deu aulas em diversas universidades internacionais renomadas, como Harvard e Oxford. Fundou com o marido, Luiz Schwarcz, a editora Companhia das Letras. Entre os mais 40 de prêmios literários que já recebeu, estão três Jabuti pelos livros ‘As Barbas do Imperador: D. Pedro II, um monarca nos trópicos’ (Livro do ano, 1999), ‘O Sol do Brasil: Nicolas-Antoine Taunay e as Desventuras dos Artistas Franceses na Corte de D. João 1816-1821’ (Melhor Biografia, 2009) e ‘Um enigma chamado Brasil’ (org. com André Botelho; prêmio Jabuti em Ciências Sociais, 2010)

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